domingo, 21 de junho de 2009

Pasquim - A universidade em que nossos jornalistas se formaram

Site ir[ia]á disponibilizar coleção completa do "Pasquim"

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GABRIELA LONGMAN

da Folha de S.Paulo

Enquanto revistas antigas são geralmente malconservadas e pouco lidas nas bibliotecas e acervos, um jornalista/ historiador/webdesigner passa as noites em claro para disponibilizar on-line e gratuitamente edições de "O Cruzeiro", "Careta" e "O Malho" --publicações que marcaram a história da imprensa no século 20.

Criador do site Memória Viva (http://www.memoriaviva.com.br/) há oito anos, Sandro Fortunato prepara uma nova empreitada: um gigantesco banco de dados digital em que tudo o que já foi escrito, citado e desenhado no "Pasquim" poderá ser localizado por internautas.

Alan Marques/Folha Imagem

Jornalista Sandro Furtado, do Memória Viva, que publica também biografia de famosos
Com a autorização de Ziraldo, Ivan Cosenza (filho de Henfil), Luiz Carlos Maciel e outros colaboradores do periódico, aos poucos Fortunato transforma em arquivo digital a coleção completa do "Pasquim", semanário editado entre 1969 e 1991 e famoso pela contestação à ditadura militar.

A coleção foi doada em maio deste ano pelo mineiro Rogério Gomes. Se Sandro mora em Brasília e a coleção estava em Juiz de Fora (MG), não teve problema: pegou um ônibus e em menos de 24 horas trouxe para seu apartamento em Brasília cerca de 300 quilos de jornal --mais de mil exemplares.

"Cheguei à rodoviária com 16 sacos de lixo lotados. O motorista me disse: 'Olha, você precisa transformar isso tudo em quatro volumes. Dois deles você tem direito a levar, o menor eu vou te cobrar, e o quarto eu finjo que não vi'."

Depois da "travessia", a coleção começa a chegar à internet na semana que vem, no dia 4 de setembro, com os 50 primeiros números digitalizados.

Carioca de 34 anos, Fortunato já viveu no Rio, em Natal, em Brasília. Embora dedique a maior parte de seu tempo ao Memória Viva, trabalha num portal particular para tirar seu sustento. "O Memória Viva nunca teve patrocinador, não cobra por acessos", diz o jornalista, cuja coleção tem cerca de 9.000 jornais e revistas.

"O site surgiu da constatação de que a web brasileira, assim como o próprio país, não costuma preservar sua memória."

No início, a página reunia biografias de personalidades da história e da cultura do país. O trabalho com a imprensa só começou em 2002. "Quando precisei de fotos de Juscelino Kubitschek, tive a oportunidade de ter em mãos 40 edições da revista "O Cruzeiro". Em pouco tempo estaria no ar um setor voltado exclusivamente para a revista. Em 2005, o site foi vencedor do Prêmio Ibest de Arte e Cultura e hoje recebe cerca de 2.000 visitas diárias.

Direitos Autorais

Para disponibilizar "O Pasquim", Fortunato procurou os colaboradores e pediu a liberação do material; mas e quanto à revista "O Cruzeiro"?

"Até hoje existe briga na família do [Assis] Chateaubriand pela fortuna dos "Diários Associados", da qual "O Cruzeiro" fazia parte. Mas a coisa é ainda mais complicada: quando vou publicar uma matéria, o direito é de quem escreveu ou do jornal que publicou? Em relação às fotos, tem o direito do fotógrafo, do veículo e de quem aparece. Ou você faz como eu fiz --vai colocando no ar-- ou então não faz nunca."

Fortunato argumenta que seu trabalho é de interesse histórico e sem fins lucrativos. "Se alguém se achar ofendido ou pedir para não publicar algo, tiro do ar na hora", diz, fugindo da encrenca judicial --nunca foi processado. "Em geral, acontece o contrário: muitos fotógrafos da época entraram no site e ficaram fascinados: "Puxa, obrigado, alguém prestou atenção e preservou no nosso trabalho"."

"Bibliotecas" similares

Se ainda são muito raras iniciativas como as do Memória Viva, pouco a pouco a internet começa a receber outros sites que ajudam a mapear história do Brasil por meio de sua imprensa e de suas publicações.

Um dos melhores exemplos é o site Rio Através dos Jornais (www2.uol.com.br/rionosjornais), que percorre eventos da história do Rio de Janeiro, entre 1888 e 1969, contados na íntegra, pela ótica de 62 diferentes jornais da época.

Recentemente o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) colocou na rede a coleção de sua célebre revista "Novos Estudos", publicação que marcou a história intelectual do Brasil a partir de 1981.

Assim, no site do centro (http://www.cebrap.org.br/) é possível acessar artigos dos críticos Roberto Schwarz e Antonio Candido, do sociólogo Francisco de Oliveira e dos economistas Celso Furtado e Paul Singer, entre outros. A leitura da íntegra dos textos, porém, só é permitida aos assinantes, ao custo de R$ 45 anuais.

O Banco de Dados da Folha gerencia a página Almanaque (almanaque.folha.uol.com.br), em que é possível acessar textos históricos do jornal e galerias de fotos antigas, ordenadas por assunto.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u63838.shtml


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Postado aqui em 22/06/2009

Wilson Simonal e o revisionismo histórico da "ditabranda"

Idelber Avelar, segunda-feira, 15 de junho 2009

Está em curso um bizarro revisionismo da música e da política dos anos 60/70, segundo o qual o Pasquim e a esquerda teriam tido poder suficiente para canonizar e destruir ícones da cultura brasileira. É o mundo ao revés. O passado é reescrito como se Jaguar e Chico Buarque, e não Médici e Geisel, tivessem comandado a nação. O mote, evidentemente, é o documentário Ninguém sabe o duro que dei, uma recuperação da figura de Wilson Simonal. A história é danada de complexa, muitos mitos a cercam e há vários interesses em jogo – a maioria deles tendo pouquíssimo a ver com Simonal. Quando Reinaldo Azevedo recomenda um filme como uma aula de história brasileira, é bom ficar de olho.

O documentário não é exatamente desonesto no que diz. Mas ele se presta a uma leitura capciosa, especialmente naquilo que não diz. Sem dedicar ao tema semanas de preparação e pesquisa, eu seria incapaz de fazer algo tão espetacular como o post do Samurai no Outono. Por isso eu havia prometido não falar do filme aqui. Mas como promessas em blog foram feitas para serem quebradas, lá vou eu. O Samura já demoliu, com o martelo da razão crítica e do conhecimento histórico, a baboseira que está se armando em torno desse filme. Tomem este post, portanto, como um humilde apêndice ao Samura. Concordo com tudo que está lá e vou acrescentar dois centavos. A necessidade de fazê-lo me foi confirmada outro dia no Twitter, onde dois interlocutores – que me davam a nítida impressão de não terem visto o filme – me martelavam sem qualquer argumento a cantilena que já virou lugar comum: “o patrulhamento da esquerda destruiu a carreira de Simonal”.

Até quem não acompanha a história da música brasileira já conhece o resumo da ópera: Simonal, negro talentoso e carismático, cantor de extraordinários recursos, mestre na divisão rítmica e no suingue, debochado e desafiador, sobe vertiginosamente na preferência popular ao longo da segunda metade dos anos 60, até que em 1971 protagoniza o episódio que mudaria sua vida. Tendo perdido o contrato que realmente lhe dava grana – o da Shell, engavetado depois que Simona fizera o presidente da multinacional esperar no aeroporto durante uma hora e meia enquanto ele dormia --, se dá conta de que os Mercedes, as farras e as noitadas não eram financiados com dinheiro infinito. Descobre-se quebrado. Acusa o contador e contacta meganhas, um deles ligado ao DOPS, para dar-lhe um cacete. Enhanced interrogation techniques, diz o Samura com ironia. Simonal promove uma sessão de tortura em seu contador no DOPS. Quando o contador lhe processa e ele é levado à delegacia para depor, tenta se safar com o conto de que “era um deles”, de que era “um homem do regime”. Daí em diante, está armado o circo para que entre a esquerda má, feia, bobona (e poderosa) que teria transformado Simonal em “dedo-duro”. Que Simonal nunca foi delator do regime é o óbvio do óbvio. Mas isso não quer dizer que você possa entender essa história sem entender a relação entre a música popular e a ditadura daquele momento. Antes disso, claro, dois fatos se impõem: 1) a origem do mito do "dedo-duro" é uma história inventada pelo próprio Simonal no momento do arrego; 2) o assunto foi amplamente tratado pela imprensa antes que o Pasquim iniciasse seu sarro. Isso fica claro no próprio filme.

Analisar um documentário é, antes de tudo, dissecar a relação a câmera e o representado. Quem viu o filme se lembra: os depoimentos de Chico Anysio são gravados em close-up horizontal, quase num tête-à-tête com o espectador. As piadas vão se encarregando de criar a cumplicidade, mas não escondem a pergunta que não quer calar: não seria outro Chico o que deveria estar ali? É bizarro o recurso a Chico Anysio para fundamentar a hipótese do filme, sendo ele, afinal de contas, o autor das frases Não tenho confiança em goleiro negro. O último foi o Barbosa, de triste memória, enunciados tão mais odiosos quanto mais nos lembramos – coisa sabida por qualquer bom vascaíno – que Barbosa foi um dos maiores goleiros da história do ludopédio. A primeira frase é odiosa e a segunda, evidentemente, é falsa. No entanto, seria demais esperar que Chico Anysio respeitasse as glórias de, por exemplo, Mão de Onça ou Dida.
Mas tergiverso, como diria meu mestre Inagaki. Voltemos ao filme.

Os depoimentos de Toni Tornado já são gravados em close-up diagonal, com a câmera em plano superior ao representado. Curiosa escolha. Diminui-se a imensa figura de Toni. Esse, claro, foi um negão que incomodou bastante o regime. Tornado tinha uma relação muito mais orgânica que Simonal com a tradição de luta negra expressa no soul norte-americano. Ficou famosa sua apresentação de "BR-3" no quinto Festival Internacional da Canção, inspiradíssima em James Brown. A ditadura chegou a temer que Tornado reeditasse os Black Panthers por aqui. Fala-se muito da composição de Simonal e Ronaldo Bôscoli em homenagem a Martin Luther King. Ora, o próprio fato de que um reacionário como Bôscoli pudesse compô-la indica que o processo de domesticação da figura do Doutor King já se iniciara. Mas no revisionismo em curso, um tributo a King passa como se fosse um tributo a Malcolm X, um escândalo do indizível. Não o era. Leiam a tese de Eduardo de Scoville, já recomendada pelo Samura. O fato é que o trabalho da câmera sobre Tornado sublinha a impotência do personagem com sua negação: puxa, não dá para imaginar Simonal como dedo-duro...

Mas é no depoimento do neoanaeróbico Nelson Motta que o filme realiza sua operação ideológica. Ao contrário do que ocorre na filmagem de Toni Tornado, as tomadas de câmera que nos oferecem as peroratas de Motta são feitas de baixo para cima, magnificando o personagem, que tem atrás de si, além do mais, uma imponente coleção de CDs e uma réplica da emblemática obra de Hélio Oiticica, que traz o bandido Cara de Cavalo morto, com a legenda Seja marginal, seja herói. Dá-lhe ideologia subrreptícia. Oiticica, evidentemente, se revira no túmulo.

O fato importante aqui é que Nelson Motta, com a autoridade de quem foi testemunha ocular e ainda é o maior repositório de fofocas da MPB das últimas décadas – autoridade, reitero, também construída pelo trabalho da câmera --, empresta legitimidade à ficção do mártir perseguido. Juntamente com muitos fatos inegáveis, vem uma boa dose de distorção e manipulação. Motta chega a afirmar que a explosão de Simonal no final dos anos 60 representou a chegada do primeiro pop star negro na música brasileira fora do samba. Curioso, né? Eu achava que Jair Rodrigues era negro. Lembremos que o estouro de “Disparada”, na voz de Jair, acontece em 1966 – vai ver que para os tímpanos Zona Sul de Motta, “Disparada” é um samba. Omito, claro, o primeiro grande astro pop da música televisionada no Brasil, o negro Jackson do Pandeiro, que embalou corações e quadris com seu programa nos anos 50. Afinal de contas, seria demais esperar que Motta, em seu leblonismo, conseguisse imaginar arte musical brasileira anterior à Bossa Nova. É a vejificação da história da MPB, em ritmo acelerado.

Se formos analisar em detalhes a música brasileira na virada dos anos 60 para os 70, aí é que a hipótese revisionista desaba de vez. Simonal era um grande artista, não há dúvidas. Talvez só o já citado Jackson fosse tão bom como ele na divisão rítmica vocal. O carisma era inegável. Mas a discussão aqui não gira em torno do talento, mas do lugar do artista num momento histórico. Simonal passa ao largo do grande embate que ocorre na música popular brasileira no final dos anos 60: o choque entre a música acústica de protesto emblematizada por Geraldo Vandré (o que se chamava, entre 1966 e 1968, de MPB, sigla que tinha na época um sentido bem diferente, mais nacionalista, daquele que adquiriria nos anos 70) e, por outro lado, o tropicalismo, que resgatara uma vocação cultural no iê-iê-iê da Jovem Guarda, canibalizando o vasto repertório do pop internacional. Aquele embate se resolve rapidinho. Poucas vezes na história da cultura brasileira um choque entre duas tendências é saldado de forma tão categórica com a vitória de um lado. Os tropicalistas comem Vandré e cia. já no café da manhã. A vitória é total e completa, e definidora dos rumos que tomaria a música brasileira. Já em 1970 não era heresia enfiar guitarra elétrica onde fosse. Sugerir que a esquerda populista musical tivesse, em 1971, força suficiente para derrubar alguém é de um cinismo inominável, vindo de quem sabe algo sobre a história – e de ignorância útil lamentável por parte de quem a desconhece. No caso de Reinaldinho, é ignorância e cinismo.

Resgatemos Simonal? A pergunta não faz o menor sentido para aqueles que, como eu, lhe dedicam ouvidos atentos há anos. O problema com o bafafá em torno do documentário é que em vez de sugerir audição à obra do artista, ele acaba traficando revisionismo mentiroso. Repito: não há mentiras no filme. Mas ele se presta a ser embrulhado com ideologia bolorenta. Aquele que muitos de nós consideramos o melhor disco de Simonal, o S'imbora, de 1965, contém canções de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Garoto, Geraldo Vandré, Marcos Valle. Esta não é exatamente uma lista de artistas “patrulhados pela esquerda”. Comparem-no com o disco de 1972, já em fase de produção na época da coça no contador e, portanto, não atingido de forma nenhuma pela suposta “demolição” feita pela esquerda má, feia, bobona e poderosa. A faixa título é uma composição do intragável Ivan Lins. Antes de chegar ao final do lado 1 do LP, você tem que suportar “Mexerico da Candinha”. I rest my case. Ouçam os discos feitos ao longo de década de 70 e comparem-nos com as pérolas anteriores, não ao cacete no contador, mas à vitória tropicalista, que já acontecera, categórica, em 1968.

Mais além do fato de que fez discos ruins nos anos 70 e passou ao largo dos rumos da música nacional daquele momento, é evidente que Simonal foi boicotado. Contribuiu a isso o fato de Simonal ser um negro de cabeça erguida, debochado, que esfregava seu sucesso na cara do establishment branco? Parece-me evidente que sim. Só afirmaria o contrário alguém como Reinaldinho, que nega a existência do racismo brasileiro, o mesmo ao qual agora ele se agarra como hipótese interpretativa para demonizar a esquerda. Mas peralá: quem eram as figuras com inserção nos meios de produção musical e, portanto, com algum poder de reverter o ostracismo de Simona? Os mesmos Mottas e Mieles que agora emprestam legitimidade para que os Reinaldinhos reescrevam – sem saber nada de música – a história da canção brasileira como se esta tivesse sido sufocada pela esquerda amordaçada dos anos 70.


PS: Aí vai mais um toque aos amigos cariocas: amanhã, terça-feira, dou palestra intitulada "Direitos humanos e vida nua", no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ), que fica no Largo de São Francisco, 01. A falação acontecerá na Sala 411, a partir das 10:30 da manhã. O agradecimento pela organização do evento vai para o Professor Cesar Kiraly.

http://www.idelberavelar.com/archives/2009/06/



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O Pasquim não se levava a sério...


Neste artigo, o jornalista e pesquisador Átila Bezerra revisa a trajetória de O Pasquim

Parece piada, para gente que comemora os 40 anos de lançamento do seu primeiro número e nesse momento deve estar festejando a memória do jornal com Ziraldo, Jaguar, Luís Carlos Maciel, Miguel Paiva, Sérgio Cabral e demais da patota, no Rio de Janeiro, de preferência em algum boteco de Ipanema. Desde o dia 26 de junho de 1969, o Pasquim já não se levava a sério, eu disse, mas os militares no poder o levaram. E muito!

Pode-se dizer que a publicação de “um cartum” apenas foi o estopim para a prisão de nove cartunistas e jornalistas pelos milicos irados. Prisão que foi até matéria no New York Times. O desenho em questão era meio que uma charge - pela sua atualidade e crítica de natureza política - baseada numa montagem feita pela patota sobre um quadro (“vagabundo!”, diria Jaguar) do pintor Pedro Américo, onde Dom Pedro I às margens do riacho Ipiranga proclama a Independência do Brasil. No lugar do histórico (e questionável) “Independência ou morte!”, lia-se num balão de fala de quadrinhos: “EU QUERO MOCOTÓ!!”. Referência ao hit musical do cantor Wilson Simonal, considerado, pelos pasquineiros, colaborador da ditadura.

Imagine práticas semanais como essa chegando aos olhos dos moralistas de plantão, militares linha dura que ainda festejavam o AI-5, parte da classe média que apoiou o golpe e demais pessoas sentadas na sala de jantar. Muitas delas proibidamente se deliciando, escondidas da sociedade, a entrevista com Leila Diniz que rompia completamente com padrões de comportamento socialmente aceitos e, de certa forma, inaugurava oficialmente (mesmo após o fenômeno revista Cláudia e Carmen da Silva) a liberdade feminina no Brasil, com circulação garantida pelo IVC - Instituto Verificador de Circulação - de 220 mil exemplares, número estrondoso para um veículo da Imprensa Alternativa.

Foram cartuns, charges, entrevistas, montagens fotográficas, capas, frases lemas, ilustrações, Pasquins-novelas, Pôsteres dos Pobres que, passando pela censura de uma forma que exigia apenas uma dedução inteligente do leitor, inovaram a forma de se fazer humor, jornalismo e trouxeram a linguagem cotidiana pra mais perto da imprensa. A entrevista sem rodeios, sem edição, ou, como se dizia na linguagem jornalística, sem “copidesque”, tal qual se dá numa conversa informal, foi uma das descobertas do semanário carioca que, como diz Jaguar, “fez o Pasquim tirar o paletó e a gravata da imprensa brasileira”.

Humoristas e jornalistas que dificilmente se juntariam num veículo da chamada grande imprensa de então, por serem muito talentosos e custarem caro, marcaram as gerações dos anos 1970 e 80 com suas pautas regadas a uísque e discutidas no Jangadeiro’s ou no Zeppelin. Paulo Francis, Sérgio Cabral pai, Tarso de Castro, Ivan Lessa e Luís Carlos Maciel exclusivamente nos textos. Escrevendo ou desenhando vale lembrar cartunistas/jornalistas como Jaguar, Ziraldo, Miguel Paiva, o convívio da velha geração com uma de novos, como o mestre maior Millôr Fernandes, Luis Fernando Veríssimo (que também desenha, viu?!) e mais no traço o mineirinho Henfil, o inesquecível Fortuna, Claudius, Nani, e a aparição de alguns dos Cassetas, como Hulbert e Reinaldo, sem esquecer a participação especial de nosso Mino.

Os personagens das tirinhas passaram a ser familiares ao leitor brasileiro. É o caso da Graúna, de Zeferino, dos Fradinhos, de Ubaldo, o paranóico, e do Cabôco Mamadô - de Henfil; da Supermãe, dos Zeróis e de Jeremias, o bom - de Ziraldo - e também de Tânia, a fossa, da Anta de tênis e do inesquecível ratinho Sig - de Jaguar - mascote e avatar do Pasquim, que até hoje vem facilmente à memória como identidade do jornal. Sig acompanhava o espírito de cada edição, rindo das adversidades, servindo como mini-editoriais desenhados e, como se diz hoje, tirando muita onda da própria situação que os contextos social e político da época traziam aos que sonhavam com dias melhores.

Texto/imagem

No Pasquim, de uma maneira particular, o texto, o desenho e os contextos dialogavam, complementando-se. Outras vezes agiam separadamente, mas unidos ao longo das páginas na construção editorial e gráfica do jornal, sendo a caricatura e suas subdivisões - desenho de humor, charge, cartum e tirinhas - marcas de identidade do jornal. Mas quem pensa que o Pasquim se resumiu apenas à crítica a ditadura, se engana. Tudo era motivo de pauta para os pincéis e as máquinas de datilografar nas edições do Pasquim: política internacional, artes, comportamento, problemas sociais. Diz-se que o jornal carioca foi quem cunhou pela primeira vez a palavra Ecologia na imprensa brasileira e a gíria que se tornou palavra, “dica”, em trechos curtos que valiam como notas que iam de teatro, cinema e literatura até opiniões rápidas sobre política, economia, fatos internacionais ou mesmo sobre a própria ditadura.

Quem pensa também que era um jornal da esquerda oficial, enganou-se novamente. Era de esquerda, sim. Mas mais pra esquerda festiva - nem um pouco careta ou sectária. Esquerda festiva tipo banda de Ipanema, réveillon de Albino Pinheiro, tanga de crochê de Fernando Gabeira na praia - que publicou “O que é isso Companheiro?” pela editora do Pasquim, a Codecri - ou mesmo Betinho - o irmão do Henfil - sendo carregado nos ombros da multidão no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, vindo do exílio.

Hoje, cartunistas consagrados como Angeli e Laerte e publicitários como Washington Olivetto, da W/Brasil, além da turma do Casseta & Planeta, admitem as influências do Pasquim. Tentativas de recuperar o passado foram feitas por Ziraldo e Jaguar com a revista Bundas e o jornal O Pasquim 21. Muito talento para um público que parece ter migrado cada dia mais para o humor na Internet. Por falar nisso, se formos para nossos dias, podemos pensar que fotomontagens em blogs como Kibeloco ou Jacaré Banguela devem muito à escola Pasquim. Desde 2007, estão sendo lançadas antologias com material diverso publicado no Pasquim, pela editora Desiderata, e que se você quiser ter na sua biblioteca vai te proporcionar horas e horas de risadas, além de ficar bonito na estante pelo seu excelente acabamento gráfico. A terceira edição - com material de 1973 e 1974 - foi lançada agora, em comemoração aos 40 anos, além de um especial de 40 páginas com algumas das memoráveis capas.

Ler o Pasquim hoje, numa pesquisa na Universidade, é se deliciar com um documento que conta a história do País sob um ponto de vista do humor, do riso, da ironia, do sarcasmo, do escárnio, da balbúrdia, da brincadeira, da galhofa. Um humor inteligente, corajoso, em desenhos que recuperaram nossa vontade de acreditar que, mesmo em meio às adversidades, é sempre possível pensar num país mais democrático, mais igualitário, mais humano. É saber que, mesmo com a seriedade que uma pesquisa acadêmica exige, somos levados pelas gargalhadas que mostram o Brasil moleque, chegando-se a conclusão que o brasileiro não leva mesmo nada a sério. E pra que levar?! Vamos comemorar os 40 anos do dionisíaco Pasquim no botequim mais próximo!

Átila Bezerra*
Especial para o Caderno 3


* Átila Bezerra é jornalista e mestrando em Comunicação pela UFC, onde desenvolve pesquisa sobre a importância da imagem no jornal O Pasquim

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=648286


Pasquim quarentão

Se vivo fosse, O Pasquim chegaria aos 40 anos na próxima sexta. Nesta edição, você relembra a história do jornal que mudou a cara da imprensa nacional e atazanou a Ditadura Militar

Em 26 de junho de 1969, quando a primeira edição de O Pasquim chegou às bancas do Rio de Janeiro, entusiastas e detratores pareciam concordar em pelo menos um ponto: ninguém botava fé que o jornal tivesse vida longa. Para os leitores, o periódico deveria ter a mesma sorte de seus antecessores: o “Carapuça”, editado pelo jornalista Sérgio Porto, mais conhecido por seu alter-ego Stanislaw Ponte Preta, que morreu junto com seu autor, em 1968; e o “Pif-Paf”, jornaleco editado por Millôr Fernandes, que só durou oito números.

No fim, a história deu uma lição nos desanimados e naqueles que colocavam olho gordo. Combinando textos e imagens, subversivos e engraçadas, apontando suas armas contra a Ditadura Militar e outras babaquices, caso do excessivo moralismo da classe média, O Pasquim foi um verdadeiro Matusalém para a imprensa alternativa. Teve aquilo que todo jornal quer ter: expressividade política, vida longa e altas marcas de vendagem. Só encerrou suas atividades duas décadas depois, em 1991. Mas aí já tinha feito muito barulho. Espezinhou seus alvos, fez rir seus camaradas e apadrinhou gente nova e talentosa no jornalismo, no humor, nos quadrinhos e nos cartuns.

Mino Castelo Branco, um dos marcos do cartum do Ceará, foi um dos talentos que o jornal ajudou o País a descobrir (veja mais na matéria com o cartunista, na página 3). Na mesma seara, Millôr Fernandes e Jaguar, os “donos da bola”, fundadores do jornal; o casseta Reinaldo (descrito por Jaguar como “o melhor cartunista do Brasil”); os gênios Ziraldo e Henfil, entre outros. No jornalismo, representantes como Tarso de Castro e Sérgio Cabral, também fundadores, dividiram espaço com nomes importantes da imprensa, caso de Sérgio Augusto, Ivan Lessa, Tárik de Souza, Paulo Francis (antes do conservadorismo, claro) e Ruy Castro.

Figura de primeira importância para o jornal foi o designer Carlos Prosperi. Era ele o responsável pela identidade visual de um veículo que tinha na combinação texto e imagem uma de suas inovações (sobre este aspecto do Pasquim leia mais na página 5, no artigo do jornalista e pesquisador Átila Bezerra).

Sacadas

Nem só de grandes nomes vive um jornal. O Pasquim logo alcançou uma tiragem de 20 mil exemplares e, em seu auge, chegou a vender 200 mil - marca invejável, mesmo para a grande imprensa nos dias de hoje e marca inimaginável para um veículo da chamada “imprensa nanica”.

Quatro décadas depois de sua primeira aparição, O Pasquim é tema de uma infinidade de lendas - algumas, tão engraçadas quanto seu próprio conteúdo. A começar pela escolha do nome para o jornal. A sugestão que prevaleceu era assim defendida por seu proponente, o cartunista Jaguar: “agora eles vão ter de inventar outros nomes para nos xingar”.

Sacadas como essa, atravessam toda história do jornal. Quando estava em alta, o Pasquim pariu uma editora, a Codecri (Comando de Defesa do Crioléu), nome dado por Henfil. Quando boa parte da redação foi presa, após publicar uma sátira do famoso quadro que “retrata” a Independência do Brasil, o jornal foi tocado por colaboradores. A primeira edição após a prisão satirizou o acontecido: dizia que agora o Pasquim saía no automático, “sem redação”.

Protagonistas

O Pasquim acabou em 1991, depois de um declínio que era o próprio declínio da imprensa alternativa. Na opinião do jornalista Átila Bezerra, que pesquisa O Pasquim há anos, “depois da abertura, a grande imprensa incorporou boa parte das inovações dos jornais alternativos”.

Perguntado quanto à razão de o jornal ter resistido aos tempos da linha dura e tombado com o país em novos tempos de democracia, o jornalista Sérgio Augusto arrisca uma explicação. “Acúmulo de dívidas (o jornal foi sistematicamente roubado por todos os seus ‘diretores’ financeiros), falta de peças de reposição (Paulo Francis teve de deixar o jornal para tornar-se exclusivo da Folha de S. Paulo), um certo cansaço. Mas esta pergunta deveria ser feita ao Jaguar, que, teimosamente, segurou o Pasquim até 1991. Eu saí do jornal nos últimos meses de 1979, sou inocente”.

A imprensa nanica se define por um jeito próprio de fazer jornalismo. Menos mecânico, mais crítico. Para Sérgio Augusto não é mais possível pensar neste tipo de imprensa para os dias de hoje. “Se até a imprensa grande está pela bola sete, como pensar numa nanica emplacando nos dias correntes? O jornalismo alternativo está, hoje, na internet”.

“Naquela época a censura era política. Hoje, ela é econômica e consegue restringir ainda mais os movimentos da imprensa. Hoje não tem mais essas coisa de jornal de jornalista, como acontecia com a imprensa nanica. Atualmente, a pequena imprensa saiu deste esquema, que acabava criando uma liberdade maior. Até a imprensa alternativa foi apropriada. E isso porque houve mudanças muito grandes, não só nos jornais, mas no mundo, na política”, opina o jornalista Tárik de Souza, outro sobrevivente do Pasquim.

Para Tárik, aí se encontra a razão de “O Pasquim 21”, nova encarnação do injurioso periódico, desta vez editado por Ziraldo, ter durado pouco. “Sem dúvida, o contexto mudou. Não há mais interesse numa coisa como essa. Quando apareceu, ‘O Pasquim’ capitalizou em cima da bossa, do cinema novo, da Tropicália. Tudo isso é que dava esse caldo de cultura que resultou no ‘Pasquim’. Havia a oposição cerrada. Mas hoje é muito difícil, porque é o mercado quem policia”.

Quem passou pelo Pasquim não esquece os dias heróicos do jornal. Hoje, Sérgio Augusto e Tárik de Souza estão envolvidos novamente com o jornal - desta vez, com sua memória, organizando antologias de sua produção. Ainda que seja preciso saber um pouco de nossa história para entender os conteúdos, a leitura vale à pena. Não é futebol, mas é de dar orgulho em quem acredita no jornalismo de verdade.

Dellano Rios
Repórter

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?Codigo=648286


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PressAA

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