domingo, 14 de fevereiro de 2010

Confesso que chorei!


A terapia do “choquinho” me faz lembrar o que vi, li e ouvi sobre tortura. O mesmo procedimento utilizado para fins analgésicos, ou seja, para abrandar e suprimir a dor, poderia ser aplicado para causá-la. É apenas uma questão de intensidade da corrente elétrica. Mesmo nas condições da fisioterapia, o aparelho pode gerar desconforto se não for regulado na freqüência adaptada à sensibilidade do paciente. O que poderia causar se utilizado para fins não terapêuticos?

Antonio Ozaí da Silva

Foi a última sessão de fisioterapia. Os procedimentos são simples: exercícios de alongamento, vinte minutos sob aplicação de Ondas Curtas e mais vinte sob “choquinho”. Primeiro, a Diatermia. Do grego diathermaínein, a palavra é definida pelo Aurélio como: “Aplicação terapêutica da eletricidade, com base no desenvolvimento de calor, em virtude de correntes induzidas no interior dos tecidos, por aplicação dum campo externo de alta freqüência”.

A Diatermia reproduz um princípio antigo: a conhecida “compressa quente”, só que através de uma máquina ligada à eletricidade. Mais uma vez, a ciência apropria-se da sabedoria popular, desenvolve teorias e aparelhos que potencializam os efeitos – benéficos ou maléficos. A aplicação de calor sobre o corpo objetiva estimular a circulação sanguínea, o combate a inflamação e alivia a dor. É, portanto, analgésico.

O alarme da máquina interrrompe o estado de sonolência e indica que terminou. O paciente é convidado à terapia do “choquinho”. Após tantos “choquinhos”, pergunto à fisioterapeuta sobre o princípio do tratamento. Ela explica que é um procedimento de analgesia. O termo técnico é TENS: Estimulação Nervosa Elétrica Transcutânea. De novo, o uso de corrente elétrica aplicada diretamente à região dolorida por meio de eletrodos.

A terapia do “choquinho” me faz lembrar o que vi, li e ouvi sobre tortura. O mesmo procedimento utilizado para fins analgésicos, ou seja, para abrandar e suprimir a dor, poderia ser aplicado para causá-la. É apenas uma questão de intensidade da corrente elétrica. Mesmo nas condições da fisioterapia, o aparelho pode gerar desconforto se não for regulado na freqüência adaptada à sensibilidade do paciente. O que poderia causar se utilizado para fins não terapêuticos?

Deitado, sob “choquinhos” que até davam uma sensação entorpecente, pensei no sofrimento dos que foram submetidos a choques elétricos em sessões de tortura que transformavam o tempo numa eternidade insuportável. Não pertenço à geração que sofreu no corpo e, em muitos casos, pagou com a vida, pela coragem de desafiar os ditadores e seus acólitos; aqueles que ousaram defender a liberdade e acreditaram na aurora de um novo tempo; os que fertilizaram o solo árido da democracia com o sangue vertido pela violência dos seus algozes.

Não sou daquela geração, mas conheci alguns dos sobreviventes. A tortura deixou marcas indeléveis, físicas e psicológicas.[1] Sei o que sofreram pelas conversas, relatos biográficos e, sobretudo, livros e filmes.[2] Sob o efeito dos “choquinhos”, lembrei-me deles e, especialmente, do que li em obras como Batismo de sangue, do Frei Betto[3]; recordei-me de filmes como O que é isso companheiro?[4], Lamarca, Zuzu Angel, etc. Lembrei-me que chorei ao assistir as cenas de tortura em Zuzu Angel e que a fala do eclesiástico tentando justificar o injustificável foi-me nauseante. Com estas reminiscências, o tempo parecia prolongar-se sob o efeito analgésico da corrente elétrica.

A minha dor foi pequena diante do sofrer que lançou as bases do tempo presente. Ela foi suportável – até porque há os remédios e fisioterapia ao alcance. Talvez eu seja sentimental demais por chorar ao assistir a um filme como Zuzu Angel, mas minhas lágrimas foram sinceras e expressam o tributo aos que sofreram para que tenhamos liberdade de expressão e até mesmo o direito de escolher os governantes, ainda que a democracia seja incompleta e decepcione. São as contradições da vida.

A máquina sinalizou que a sessão terminara e me fez voltar à realidade. Meu corpo estava melhor, a dor cedeu. As lembranças, porém, me acompanharam. Não esquecer é também uma forma de dizer não à repetição do passado.

Acesse o Blog do Ozaí e assista ao trailer do filme Zuzu Angel: "Lembrei-me que chorei ao assistir as cenas de tortura em Zuzu Angel e que a fala do eclesiástico tentando justificar o injustificável foi-me nauseante. Com estas reminiscências, o tempo parecia prolongar-se sob o efeito analgésico da corrente elétrica", professor Antônio Ozaí da Silva.

http://antoniozai.wordpress.com/

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA

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